Ricardo Moura é Jornalista e Sociólogo, Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (2016). Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência, da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC), e do Laboratório de Conflitualidades e Violência, da Universidade Estadual do Ceará (Covio/UECE). Desde 2014 é colunista de Segurança Pública do Jornal O POVO (Fortaleza-CE). Em artigo de opinião, o especialista comenta a seletividade da indignação de setores da sociedade fortalezense quanto aos problemas de violência enfrentados pela Cidade.
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Há cinco anos, uma mão espalmada vermelha de sangue era um símbolo onipresente nas ruas e nas redes sociais. Tratava-se do movimento "Fortaleza Apavorada", que tinha como objetivo cobrar uma ação mais efetiva do Estado na área da segurança pública. Passado todo esse tempo, a violência ainda persiste, mas Fortaleza não se apavora mais. O que aconteceu?
O primeiro motivo é socioeconômico. A pauta do "Fortaleza Apavorada" restringia-se a uma faixa territorial e de renda muito específicas. Não pensava a cidade como um todo, mas somente da praia de Iracema à avenida 13 de Maio. Com alguns ajustes no policiamento, a quantidade de furtos, assaltos e arrastões caiu nessa região, diminuindo a sensação de insegurança vivida por moradores das áreas mais ricas e urbanizadas. Não deixa de ser uma reivindicação atendida.
A periferia, por sua vez,só pôde sentir-se relativamente segura no período da "paz" entre as facções. O relato de muitas pessoas era o de que pela primeira vez podiam transitar livremente de um local a outro sem se sentirem ameaçadas. Não à toa, houve quem apoiasse o crime, sujeito coletivo criminal, mas também portador de demandas políticas das comunidades.
O segundo motivo é político. O discurso do "Fortaleza Apavorada" alinha-se ideologicamente à atual política de segurança, em que a ordem é investir mais na repressão e menos em defesa social. Um bom exemplo disso foi o destaque dado pelo ministro Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, à atuação conjunta entre o governador Camilo Santana e o presidente Jair Bolsonaro no combate às facções.
Além disso, políticos que se valeram do populismo penal foram eleitos em todas as esferas. Fazem parte dessa plataforma de soluções fáceis a liberação irrestrita do uso de armas de fogo, o excludente de ilicitude para policiais que matarem em caso de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção" e a ampliação de penas para crimes diversos. Temos, portanto, uma série de motivos para que não haja mais apavoramento.
O resultado dessa estratégia, contudo, já é sabido. O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca) apresenta hoje, às 14 horas, na Assembleia Legislativa, uma nota técnica sobre orçamento público. Embora os gastos com Segurança Pública tenham crescido 230,8% no Ceará, entre 2001 e 2018, a taxa de homicídios saltou de 17,2 homicídios por 100 mil habitantes para 56,7 homicídios por 100 mil habitantes. A Prefeitura de Fortaleza também se destaca nesse quesito. Os gastos com segurança pública passaram de R$ 68,6 milhões, em 2006, para R$ 222 milhões em 2018, ou seja, um acréscimo de 223,8% em 12 anos.
Um argumento a favor de tanto investimento é o recuo nos índices de violência. No entanto, a queda ocorre tendo como base um patamar ainda muito elevado. Com 4.158 homicídios registrados, 2018 poderia ter sido o ano mais violento da história se em 2017 não tivéssemos assistido a uma inédita guerra entre facções.
É louvável que os homicídios estejam caindo em 2019, mas é cedo para adotar um discurso triunfalista. Precisamos avaliar com cautela o que desse resultado se deve às ações governamentais e o que é efeito de um novo reordenamento entre as organizações criminosas. Após dois anos de confrontos incessantes, é mais que natural haver um período de refluxo. A ocupação permanente realizada nos presídios, centro nervoso das facções, também é um fator contribuinte para a redução das ocorrências criminais.
Embora na fotografia estejamos bem, as condições sociais e econômicas estão cada vez mais precárias. Entre 2014 e 2019, o número de pessoas desocupadas no Ceará saltou de 228 mil para 467 mil. É muita gente em uma situação bastante vulnerável ao aliciamento de grupos criminosos, cuja proposta de ganhos fáceis soa a cada dia mais tentadora. Além disso, a automação dos serviços fará com que muitos empregos sejam eliminados em definitivo, como a função de cobrador de ônibus. Como lidar com essa realidade?
De acordo com a publicação do Cedeca, a opção do Governo vem sendo a do desinvestimento: os gastos com assistência social caíram de R$ 300 milhões, em 2001, para R$ 280 milhões, no ano passado. Os percentuais gastos em áreas correlatas são modestos se comparados ao que se investe em segurança. Como afirma o sociólogo Zygmunt Bauman, em uma economia de viés neoliberal, "os governos detêm pouco mais que o papel de distritos policiais superdimensionados".
O futuro que se desenha é o da mão pesada da Lei em um estado cada vez mais incapaz de garantir o bem-estar social. O risco dessa combinação explosiva deveria nos deixar apavorados.
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