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Blog Escrivaninha: Campanha eleitoral desumaniza presos em troca de votos


Papa Francisco realiza cerimônia de lava pés em sinal de respeito e misericórdia pela população encarcerada. Foto: vaticannews

Por Ricardo Moura*, no Blog Escrivaninha.


A desumanização das pessoas encarceradas foi a tônica de uma eleição pautada fortemente nos valores morais, como se o fato de cumprir uma pena colocasse o apenado em uma condição inferior à de um ser humano. Estar relacionado de alguma forma a essa situação tornaria o candidato “impuro” moralmente perante os eleitores.

Em uma disputa eleitoral tão polarizada quanto a que vivemos, o debate de propostas cedeu espaço a uma verdadeira troca de acusações. Interessou mais tentar aniquilar a honra do outro que discutir os rumos do país nos próximos anos. Nessa contenda, a população carcerária serviu como um bode expiatório para que as candidaturas fizessem valer toda sua capacidade de estigmatizar o adversário por meio das mais diversas associações.


Durante a campanha, vimos desde vídeos de presos e egressos que, supostamente ou não, votavam em candidato X a político sendo chamado de ex-presidiário em debate, como se isso fosse uma ofensa, a despeito de toda a parcialidade do processo judicial que o colocou nas grades. Nas redes sociais, o quadro não foi diferente: imagens montadas de uma penitenciária circularam como se houvesse uma comemoração ao resultado do primeiro turno em seu interior.


A desumanização das pessoas encarceradas foi a tônica de uma eleição pautada fortemente nos valores morais, como se o fato de cumprir uma pena colocasse o apenado em uma condição inferior à de um ser humano. Estar relacionado de alguma forma a essa situação tornaria o candidato “impuro” moralmente perante os eleitores.


Essa concepção é um veredito terrível e abominável sobre a condição humana. Uma sociedade que não acredita na reabilitação dos próprios cidadãos é uma sociedade sem futuro algum. O que dizer então de um país cuja população carcerária é a terceira maior do mundo, com mais de 900 mil detentos. E esse número só cresceu durante a epidemia, impulsionado pelas diversas ocorrências de prisões por furto com o agravamento da miséria e do desemprego.


Compreender a situação dos presos como uma realidade entre o bem versus o mal é adotar uma postura ingênua ou de má fé sobre o tema. As prisões, com todas suas limitações, são espaços de cumprimento de penas e não purgatórios humanos ou algo do gênero. Implementar práticas desumanizantes contra quem está encarcerado é infligir uma dupla penalidade ao detento. Quando a sentença é cumprida, o presidiário volta ao convívio social. Nesse retorno, a expectativa é que não haja uma reincidência no mundo do crime e que a vida possa seguir dentro da legalidade. Justiça não é vingança. Pelo menos enquanto este país ainda for uma democracia.


A hipocrisia reina em se tratando do que consideramos o “crime merecedor de punição rigorosa” e do que também é crime, mas fazemos vista grossa. Sonegação é vista por muitos como uma espécie de contravenção menor, quase como jogar no bicho. O mesmo sujeito que alivia a barra do jogador famoso que sonega milhões é aquele que apedrejaria, se tivesse oportunidade, quem furta alimentos por causa da fome ou quem rouba um celular.


Há, no Brasil, uma escala de percepção da criminalidade em decorrência da classe social. Basta mencionar o fato de que os filhos da classe média e alta apenas “transportam ou recebem” drogas, mas nunca serão tachados de traficantes nos jornais. Dificilmente o rosto deles será exposto na mídia, condição legal que, em tese, valeria para todos embora teimamos em querer esquecer disso.


Gostamos dessa condição de uma cidadania “premium”. É reconfortante saber que existem os seres humanos, nossos iguais, e que, do outro lado, há seres cuja caracterização se aproxima mais do monstruoso do que do humano. A propaganda opera nessa fronteira quando acusa os candidatos adversários de serem do “lado de lá”, como se houvesse uma muralha tangível que separasse os cidadãos de bem dos vagabundos.


Os líderes religiosos têm um papel de protagonismo ao traçar essas linhas divisórias para seus fiéis. Como bons pastores, caberia a eles repreender o pecado, mas sem deixar de estender a mão para quem se desgarra, quem se perde em sua trajetória. O cristianismo, aliás, é a religião do perdão. No afã de desqualificar os inimigos políticos, contudo, esse preceito incômodo é omitido dos sermões.


A impressão que temos é a de que determinados trechos da Bíblia foram suprimidos para dar ênfase apenas ao que prega o Deus irascível do Antigo Testamento. Como se o Filho de Deus não tivesse morrido vítima de um processo judicial injusto na condição de… preso. Se as lideranças religiosas creem firmemente que não há mais redenção para os encarcerados, por que se dedicam tanto a fazer evangelização nas cadeias com direito até mesmo a cursos de teologia? Preso bom só é o preso da igreja?


Passado o redemoinho das eleições, em algum momento precisamos discutir a sério, de forma adulta, como reformar o sistema penal e os centros educacionais para que eles possam se tornar espaços de ressocialização. Se os políticos não se dispõem a encarar esse desafio, que pelo menos parem de estigmatizar os presos em suas campanhas.


*Jornalista (DRT 1681 jpce) e cientista social com doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e colunista do jornal O POVO sobre segurança pública.

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