
Trajetória pioneira de Cynthia Corvello é uma mostra do potencial da educação para transformar vidas e um chamado para que possamos mudar a forma como encaramos as pessoas encarceradas. Percursos individuais de superação necessitam se tornar algo rotineiro e não apenas um episódio isolado.
Por Dayanne Borges, em 26/10/2022.
No dia 13 de junho de 2022, Cynthia Corvello, de 51 anos, defendeu sua dissertação de mestrado no curso de História Social da Universidade Federal do Ceará (UFC). No trabalho “Viver além da margem: existências e resistências de mulheres criminalizadas (Ceará, 1970-1990), a historiadora analisa os processos de criminalização e patologização de mulheres em conflito com a lei ao longo desse período.
Essa história poderia ser igual a de milhares de estudantes de pós-graduação se não fosse por um detalhe: Cynthia começou sua trajetória acadêmica no local exato de seu campo de pesquisa, ou seja, cumprindo pena em regime fechado no Instituto Penal feminino Auri Moura Costa.
A caminhada até o título de mestra enfrentou diversos percalços. Cynthia foi presa em 1998 pela coautoria de um duplo homicídio. No ano seguinte, foi liberada para aguardar o recurso do julgamento em liberdade. Ela foi para São Paulo, onde trabalhou como gerente de setor em uma empresa de cosméticos.
Em maio de 2010, a historiadora foi comunicada da recusa do recurso pelo defensor público que a assistia juridicamente. Teve, então, de retornar para Fortaleza para cumprir a pena.
“Na época eu era uma profissional bem paga, fazia faculdade de Filosofia e tinha uma vida maravilhosa. Eu me desfiz de tudo isso, arrumei minha mala, peguei um ônibus e me apresentei no fórum”, comenta.
Cynthia foi presa pela segunda vez dia 10 de junho de 2010 e ficou em regime fechado até 10 de junho de 2013.
Nesse período, Cynthia relata o interesse de retomar os estudos. Estar presa, contudo, era um impeditivo para tanto. “Fiz o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e consegui uma vaga pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), mas tinha que ter a permissão da juíza e o aceite da universidade”, afirma. A Lei de Execução Penal prevê que o Estado tem de garantir apenas o ensino fundamental e médio para pessoas privadas de liberdade.
Atendendo a um pedido da Defensoria Pública, por meio do Núcleo de Especializado em Execução Penal (Nudep), a juíza da 2ª Vara de Execuções Penais do Fórum Clóvis Beviláqua, Luciana Teixeira de Souza, permitiu que Cynthia cursasse História, criando uma jurisprudência sobre o assunto.
“Ela [a magistrada] foi extremamente corajosa. Não era um direito, foi um benefício que me foi concedido. Por causa disso, ela foi muito criticada na época”, relembra.
Sobre o aceite da Universidade, o departamento de História realizou uma reunião com os alunos para saber a opinião do corpo discente e Cynthia revela: “Eu fui adotada por eles”.
Aulas sob monitoramento
Em 2012, Cynthia começou a frequentar a universidade por meio do monitoramento eletrônico, em uma época em que esse aparato tecnológico estava sendo desenvolvido e não era tão disseminado quanto hoje. Ela foi uma das primeiras pessoas a utilizar a tornozeleira eletrônica no estado do Ceará. “Eu fui cobaia”, brinca ao lembrar-se do episódio.
Cynthia conta ter tido limitação de deslocamento dentro da universidade por causa do monitoramento, mas seus colegas universitários tentavam sanar esse problema:
“Eles iam pegar livros para mim na biblioteca. Às vezes, eu tinha fome e queria merendar e eles compravam para mim”.
A ajuda não se restringia dentro da universidade. Como não podia se deslocar até o Arquivo Público para fazer suas pesquisas, um colega se dirigia até o local e de lá levava o material à penitenciária.
A historiadora destaca ter gratidão à Analupe Araújo, diretora do Instituto Penal Auri Moura Costa naquele período, por ter permitido a entrada do estudante para a produção do trabalho. No início da graduação, Cinthya percebeu um estranhamento das colegas que cumpram pena em regime fechado pelo fato de ela ter recebido o benefício. “É difícil pra quem está lá dentro ver uma pessoa que pode sair todo dia”, comenta.
Com o passar do tempo, a historiadora revela que várias mulheres privadas de liberdade começaram a manifestar interesse em estudar.
Em 2013, a Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) criou um curso de bacharelado em Filosofia no Auri Moura Costa. Algumas egressas do curso chegaram ao doutorado.
“Por mais que seja diferente a realidade das mulheres é um gatilho pra mim. Sim, é um gatilho. Então eu chorava. Eu me envolvi muito”, sobre o desafio pessoal de estudar o sistema prisional.

Planos para o futuro, branquitude e emoções diversas
Em 2016, Cinthya concluiu a graduação na UFC e, em 2019, iniciou o mestrado em História Social na mesma instituição em que se formou. Em junho de 2022, a historiadora defendeu sua dissertação de mestrado. Em seu trabalho, ela utilizou fontes históricas como publicações governamentais, leis, periódicos e prontuários prisionais das detentas.
Questionada sobre um possível doutorado, Cinthya Corvello diz que recebeu sugestões para continuar explorando essa mesma temática, mas o trabalho de pesquisa a deixou sensibilizada. “Por mais que seja diferente a realidade das mulheres é um gatilho pra mim. Sim, é um gatilho. Então eu chorava. Eu me envolvi muito”, revela. As emoções despertadas, contudo, não são apenas negativas: “Eu chorei muito, mas também dei muita risada, porque tem umas histórias muito doidas”.
No fim da entrevista, a historiadora fez uma ressalva ao destacar que a questão racial não pode ser ignorada em sua trajetória. “A minha branquitude foi o que me colocou em um lugar de destaque no presídio e me possibilitou ter um dossiê de bom comportamento, que abriu portas. Existem dezenas de pessoas tão capazes quanto eu, mas que não conseguem ter o mesmo tratamento porque não têm a visibilidade que eu tive”, pontua.
Parabéns pela reportagem magnífica e essencial nesses tempos de retrocesso político em nosso país. Precisamos garantir os direitos das pessoas enarceradas! Saudações democráticas.
Déa de Lima Vidal
OABCE 49.234
limavidaladvocacia@gmail.com