Por Ricardo Moura*
Em O POVO, de 27 de Mar de 2022.
A forma como lidamos com as pessoas presas se tornou, recentemente, um elemento-chave na discussão em torno da área da segurança pública. Por muito tempo, foi possível fazer vista grossa sobre os encarcerados, fingindo que a população carcerária era invisível. O advento de novas tecnologias de comunicação e o reordenamento criminal cujo epicentro ocorre nas prisões, contudo, fizeram com que essa realidade se alterasse de forma drástica. O que acontece por trás das grades repercute fortemente fora delas.
Pautas subterrâneas emergiram à sociedade de forma violenta por meio de protestos que pararam a cidade, amplificando a sensação de terror via imagens de ônibus incinerados e atentados a órgãos públicos. Desde então, a gestão governamental do encarceramento passou a operar sob uma forma mais prioritária, buscando equilibrar a necessária imposição da disciplina à promoção de medidas que visem à ressocialização.
As medidas punitivas em regime aberto, como o monitoramento eletrônico, visam à redução da superpopulação carcerária. Trata-se de uma estratégia cuja adoção cresce ano a ano, passando de 1.809 pessoas utilizando tornozeleira eletrônica, em 2018, para 7.726, este ano, ou seja, um crescimento de 299%.
A possibilidade de cumprir a pena fora das grades é um fator importante para evitar que o sistema penal fique ainda mais estrangulado. Em fevereiro de 2018, o sistema penitenciário do Ceará contava com 15.323 presos e presas em regime fechado. Em 2020, esse número saltou para 24.035, vindo a cair para 22.971, em fevereiro deste ano.
Somados, os números de presos nos regimes aberto e fechado aumentou 79% nos últimos quatro anos, ficando em torno de 30 mil condenados. Trata-se, certamente, de um patamar bastante elevado, mas que poderia ser ainda pior caso a reclusão fosse o único meio de punição.
Por causa disso, o processo de desencarceramento precisa estar no horizonte dos gestores. A prisão, como conhecemos, é um dispositivo social inviável. O uso de tecnologias de monitoramento remoto, bem como a possibilidade de maior integração dos egressos à sociedade são estratégias que possibilitam esvaziar as cadeias, seja pela abertura do regime seja pela diminuição da reincidência.
A inauguração de um parque onde antes funcionava o Instituto Penal Professor Olavo Oliveira (IPPOO), no Itaperi, por exemplo, só foi possível a partir do reordenamento das vagas. Por muito tempo, os moradores tinham de conviver com a rotina de vigilância do presídio e as fugas que costumavam ocorrer. O temor era uma constante. Mesmo após a desativação da unidade, o paredão marrom era uma lembrança amarga na paisagem do bairro. Hoje, o espaço abriga a possibilidade de lazer, geração de renda e integração comunitária para a população local, criando oportunidades de viver a cidade sob uma ótica diversa da do consumo.
Há uma pesada sombra, contudo, pairando sobre o sistema prisional cearense. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) propôs uma série de recomendações ao Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), a partir de inspeções realizadas em 26 unidades prisionais e varas responsáveis pela fiscalização do cumprimento das penas e do funcionamento das prisões, no mês de novembro.
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De acordo com o "Relatório de inspeções nos estabelecimentos prisionais do Estado do Ceará", as mudanças mais urgentes e abrangentes se referem ao fim dos castigos coletivos, à fiscalização das unidades prisionais, à implementação de procedimento adequado ao tratamento de denúncias de tortura e violações de direitos e ao aprimoramento do controle processual por parte da magistratura.
O CNJ determinou ainda que fossem proibidos a aplicação ilegal de sanção coletiva às pessoas privadas de liberdade e os procedimentos internos nos estabelecimentos prisionais que sejam abusivos e degradantes, de estresse postural, que causem estigma e sofrimento, bem como a responsabilização dos envolvidos pela prática de atos de tortura, maus tratos ou tratamentos cruéis ou degradantes.
Em abril de 2019, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura já havia identificado problemas graves no sistema prisional cearense como falta de acesso à água, falhas na assistência médica e indícios de prática de tortura. A impressão que temos, a partir das reiteradas denúncias vindas de órgãos diversos é que o Governo do Estado pouco avançou no que diz respeito à manutenção dos direitos fundamentais da pessoa privada de liberdade, apesar de alguns avanços pontuais em outras esferas.
P.S. Não deixa de ser irônico, ainda que de forma involuntária, que o novo parque tenha recebido o nome de Dom Aloísio Lorscheider. O religioso, que sempre esteve ao lado das populações mais vulneráveis e dos encarcerados, certamente estaria tomado de uma fúria divina ao presenciar o descaso com que a sociedade e os líderes religiosos encaram a questão prisional atualmente. Que o seu exemplo possa nos iluminar em tempos tão difíceis.
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