O testemunho de Dom Aloísio Lorscheider naquele emblemático sequestro de vinte anos atrás, ainda tem sabor de profecia para a Igreja e a sociedade contemporânea.
Foto: JOÃO CARLOS MOURA, em 15/3/1994.
Por Marco Passerini*
Dia 15 de março de 1994. Um cardeal, dois bispos auxiliares, um vigário episcopal e nove ilustres personalidades do mundo da política, do Ministério Público e dos meios de comunicação foram feitos reféns sob a mira de armas artesanais nas mãos de um pequeno grupo de amotinados do Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), em Fortaleza.
Do lado de dentro longas horas de angústia, de medo e incerteza por parte dos reféns e a desesperada guerra de nervos dos sequestradores. Fora das muralhas, uma quilométrica fila de carros invadindo a BR 116 para ver de perto aquele momento dramático e, mais longe ainda, uma incessante corrente de oração. A notícia do desfecho feliz viria depois de um dia e uma noite de extenuante apreensão.
“Para mim, aumentou o amor por essa gente e a necessidade de dedicar-me ainda mais aos presidiários, que são os excluídos da sociedade”. Numa entrevista de primeira mão, essa singela reação de Dom Aloísio deixou muita gente perplexa dentro e fora da Igreja. E com razão. Complicado demais para os “sábios e inteligentes” (Mt 11,25) entender de profecia. Ainda mais quando o testemunho do Pastor apontava para uma leitura mais profunda daquele fato tresloucado. A leitura de quem consegue, contra toda a evidência,acreditar que a Graça e Deus trabalha além das aparências e que todo gesto desesperado sempre tem um recado a ser decodificado. Mais cômodo para os analistas da época apelar para uma tal de “síndrome de Estocolmo”, fenômeno psicológico em que o sequestrado se afeiçoa e se associa ao seu algoz.
Naquele tempo eram pouco mais de seiscentos os presos que dividiam no IPPS um espaço construído para quatrocentos, sob a custódia de uma dúzia de agentes penitenciários. Poucos anos depois, a superlotação chegou a 1.600 detentos, com o mesmo quantitativo de agentes. Na mesma época, Brasil afora, a população carcerária era pouco mais de cem mil. Hoje, já vai além de meio milhão.
“Nossos sequestradores são jovens carentes. Infelizmente é só esse tipo de gente que está na cadeia e não são assim tão perigosos, ainda mais no Brasil onde pessoas muito mais perigosas estão soltas por aí”. São palavras de Dom Aloísio.
Hoje, cerca de 70% da população carcerária está na faixa de 18 a 27 anos e, mesmo assim, ninguém acorda para a urgência de uma política penitenciária que contemple projetos pedagógicos multidisciplinares e sistêmicos e para a necessidade de um atendimento individualizado capaz de despertar nos jovens o valor e a dignidade da vida humana.
Jovens, todos filhos de nossas comunidades: frutos da fome, da desestruturação familiar, da ausência de políticas públicas, da droga, do tráfico de armas e do crime organizado. Todos filhos do endeusamento do mercado excludente. Cidadãos largados ao deus-dará, antes da prisão. Esquecidos e odiados, mais tarde atrás das grades, pela ojeriza da própria comunidade assustada e mal informada.
Ociosidade total, tortura física e psicológica e um sistema judiciário desaparelhado e preguiçoso que nada tem a oferecer aos infratores da lei a não ser um regime cada vez mais fechado e desumano que, de certo, não poderá contribuir para a tão propalada ressocialização. Sem falar da aplicação insignificante de penas alternativas para a grande quantidade de crimes de pequeno porte.
Enquanto isso, a reincidência que ultrapassa 70% é a prova incontestável de um sistema penal que anda na contramão da própria Lei de Execução Penal Brasileira, “das regras mínimas” das Nações Unidas e das jurisprudências mais modernas que apontam para o fim da Justiça Punitiva em prol de uma Justiça Restaurativa.
A complexidade do Sistema Penitenciário, hoje, requer um debate aberto onde os interlocutores não sejam apenas os responsáveis pela Justiça e pela Segurança, mas todos os poderes públicos, as organizações sociais, a comunidade como um todo e as igrejas também.
Faz-se urgente que as Igrejas e demais religiões mostrem com maior visibilidade sua missão de educadoras das consciências. Com lucidez, lembrar aos que detêm o poder de cuidar do bem comum, ainda reféns de políticas sociais compensatórias e práticas de segurança repressivas, que a prevenção continua sendo o melhor antídoto ao desmantelo social.
Cabe também a elas defender de forma intransigente e inequívoca a dignidade de todo o ser humano, que permanece intocável mesmo após um crime, e despertar nos governos um empenho mais efetivo na criação de oportunidades para todos, a partir dos mais excluídos. As instituições religiosas, profundas conhecedoras das angústias e sonhos de quem vive atrás das grades, não podem fugir do debate.
É humano o que os nossos presidiários estão vivendo? É eficaz para uma adequada tutela da justiça? Está contribuindo para a reabilitação de quem errou? Em que medida a condenação do agressor devolve a paz às vítimas? O que ganha e o que perde a sociedade com as atuais práticas penitenciárias? Não haveria outras hipóteses de Justiça mais restaurativas?
A sociedade, hoje refém do medo e de seus instintos de vingança, precisa mais do que nunca da luz de uma teologia libertária que, partindo da conflitualidade das relações humanas, conduzam sempre a reconsiderar a justiça humana com os parâmetros da Justiça divina, sem paternalismos ou ingenuidades.
Os cristãos acreditam de verdade que a pessoa encarcerada é o próprio Filho do Homem? Para tanto, é preciso voltar aos tempos de outrora, quando a comunidade cristã destemida era “refém” exclusivamente do Evangelho de Jesus de Nazaré.
*Artigo extraído do livro: “Mantenham as Lâmpadas Acesas” (O Grupo -2008).
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