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Blog Escrivaninha: A barbárie dos homens de bem



Por Ricardo Moura*, no Blog Escrivaninha.


Sexta à tarde. Duas mulheres são acusadas de estarem participando de assaltos no bairro Vila Manuel Sátiro, em Fortaleza. São detidas por moradores e interrogadas sob as câmeras de um aparelho celular como se, necessariamente, fizessem parte de alguma organização criminosa. O roteiro, inquisidor, busca saber se elas possuem apelido, algo que as vincule a crimes diversos. Uma delas responde que mora ali próximo, em um condomínio. Afirma ser prostituta, mas não ladra.


As imagens seguintes mostram as duas sentadas em frente ao portão de uma casa, em uma rua indeterminada. Há uma multidão cercando-as. Um homem tenta agredi-las com um chute, mas é impedido. Há regras no linchamento moral. “O homem não trisca nelas não, mas a mulher que sabe bater fica à vontade”, comenta um dos presentes. Não há como saber se a agressão ocorreu, a gravação não registra. As mulheres, em desespero, perguntam o porquê de a polícia não ter sido chamada. “Cadê a polícia?”, questionam.


Não há margem para a ação do sistema de justiça criminal naquela rua, naquele exato momento. A próxima imagem, desta vez uma fotografia, mostra os corpos das duas mulheres sem vida abandonados às margens da Lagoa do Mondubim. Quem as matou? A resposta mais comum é atribuir esse tipo de sentenciamento às facções. Pode ter havido a participação de algum integrante de grupo criminoso na execução? Talvez. Mas o que impressiona é a sede do grupo ali presente em fazer justiçamento com as próprias mãos. São pessoas que, muito provavelmente, não possuem antecedentes criminais.


Diante de tal desejo de se vingar, de fazer sofrer, não há espaço para a ação policial, muito menos para os trâmites legais. No grupo de WhatsApp onde o vídeo foi divulgado ninguém se indignou com o que viu. Houve até quem recomendasse a criação de um grupo de extermínio para lidar com esse tipo de situação. Não duvido que não haja. Seria ingenuidade creditar tantas mortes apenas às facções, como se não existissem outros agentes organizados capazes de eliminar vidas humanas por dinheiro, ódio ou interesses diversos.


Cabe ao Estado investigar o ocorrido. Casos assim podem ser replicados se não houver uma resposta à altura. Agir com leniência servirá apenas de estímulo para que mais justiçamentos aconteçam. A barbárie está aí sob nossas vistas. Sendo cometidas por pessoas de bem, cidadãos acima de qualquer suspeita. Quantas pessoas que aparecem no vídeo comungaram, foram à missa ou ao culto no fim de semana de alma lavada, como se nada demais tivesse acontecido além do que é justo?


Embora não justifique, o cenário em que esse tipo de prática acontece e é validado não poderia ser mais desesperador. As condições de vida dos mais pobres vêm se precarizando demais durante o período da pandemia. Cenas de ossos e pés de galinha sendo comercializados como se fossem peças de primeira agridem o nosso olhar, escancaram a nossa miséria, uma chaga social que pensávamos ter abolido. Ao mesmo tempo, o principal programa de transferência de renda chega ao fim de forma impassível, sem grita, sem resistências, como um ato necessário e irrevogável. As consequências dessa medida ainda não podem ser sentidas. A conta ainda vai chegar sobre os mais vulneráveis.


Em paralelo, os índices de violência letal voltaram a crescer. A redução dos assassinatos na comparação com 2020 se perdeu em meio ao recrudescimento dos homicídios duplos e triplos, conforme reportagem do O POVO mostrou na semana passada. São mortes que não trazem em si a caracterização de uma chacina, não causam o mesmo impacto na população e nem nos meios de comunicação, dificultando sua apreensão pela sociedade. Só é possível perceber a extensão desses fenômenos quando o observamos por meio de levantamentos e vemos o quanto esse tipo de prática foi banalizada.


Tais mortes se inserem em meio a uma nova abordagem do crime organizado, mais explícita, sem pudores de se expor como tal, na forma da cobrança de pedágios e extorsões sobre comerciantes locais a fim de se capitalizar. Não se trata de uma atividade nova. Muitos comerciantes pagavam “empresas de segurança” para se sentirem seguros. O que vemos agora, contudo, é que o próprio negócio está em risco caso não haja o pagamento.


Diante de tais condições, não se vê mudanças, muito menos soluções. A impressão que se tem é de que estamos sozinhos e sem qualquer amparo. De certa forma, este é o recado dado pelo governo federal: resolvam seus problemas por si mesmos, nas mais diversas esferas, deem seus pulos. É terra de ninguém, é salve-se quem puder diante de tamanha brutalidade. Qual o seu número nesse imenso jogo de sobrevivência?


Sobre a imagem. Trecho de gravação que circulou em grupos de whatsapp na última sexta-feira, dia 29.


*é jornalista (DRT 1681 jpce) e cientista social com doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Contato: escrivaninhacontato@gmail.com

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