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'Cegueira crônica, silêncio macabro': Carta aberta da presidente do Conselho Penitenciário do Ceará


"A Constituição Federal e a Lei de Execução Penal foram rasgadas. Relatórios de inspeções do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará (Copen) e da Defensoria Pública, ações várias já protocoladas e bem fundamentadas, o relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura dizem que assim o é", critica em Carta Aberta a presidente do Copen. (Foto: Mitch Lensink/Unsplash)

A Advogada Criminalista Ruth Leite Vieira é professora da Universidade de Fortaleza (Unifor), presidente do Conselho Penitenciário do Ceará (Copen) e membro da Ordem dos Carmelitas Descalços Seculares (O.C.D.S.). A Pastoral Carcerária do Ceará se solidariza com seu grito público por Justiça.



Carta Aberta


Após cinco meses do início da nova gestão do Sistema Penitenciário e da instalação da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), uma análise honesta dos novos parâmetros da condução do tratamento penal precisa ser feita no Ceará. Neste intento, a dificuldade que se verifica está no silêncio das instituições que formam o Sistema de Justiça (Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, OAB) e também da sociedade civil, principalmente a partir das instituições religiosas. Ambas as classes de instituições são o meu mundo, daí a perplexidade diante de um silêncio macabro.


O discurso encantador do Governo, a partir da lógica do “contato zero” instituída pelo atual Secretário da SAP, transmite algumas ilusões que anestesiam as autoridades e paralisam as instituições que formam o Sistema de Justiça. Uma lógica fundada no uso excessivo da força e na restrição de itens básicos de sobrevivência humana, como água e comida, que geram um resultado de aparente disciplina, controle, limpeza e organização.


As autoridades têm se comportado como que envolvidas pelo ”canto das sereias”. Passaram então a padecer de uma cegueira crônica produzindo esse silêncio macabro que permanece silente, sem que situações aberrantes, outrora de imediato apuradas, possam demover o tal torpor, mesmo provadas por perícia séria e internacionalmente respeitada como é o caso do Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.


O desalento é profundo. Perceber que instituições tão caras para a democracia padecem de tal cegueira gera o sentimento de insegurança jurídica e social no qual o cidadão se vê em total desamparo. Quem lutará pelos direitos da maioria da população deste país que é pobre, preta e vulnerável? Quem evitará que os filhos dos “bandidos” e suas famílias sejam cooptados pelos grupos criminosos depois de serem abandonados pelo Sistema de Justiça? Sim, o desalento é profundo.


Faço parte do Sistema de Justiça e vivo hoje assustada em pensar no porvir, e assustada também em perceber que os grandes ideais que aprendemos nos bancos de faculdade foram sepultados a partir da aquiescência dominante de que basta estar aparentemente limpo, em silêncio e em procedimento. Água, alimentação, higiene pessoal, integridade física e moral para os presos e suas famílias são bens de só menos importância.


Por pensar assim, já sou estereotipada de esquerdopata ou qualquer coisa parecida. No entanto, a demora em falar se deu pela necessidade de comprovar os fatos que, de início, pareciam apenas relatos de “mulheres de bandidos”.


A Constituição Federal e a Lei de Execução Penal foram rasgadas. Relatórios de inspeções do Copen e da Defensoria Pública, ações várias já protocoladas e bem fundamentadas, o relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura dizem que assim o é. O Sistema de Justiça é que padece de cegueira crônica e por isso não vê. Grandes perdas para a sociedade que, sem defesa, amargará graves consequências.


O Copen, cuja presidência assumi em janeiro do corrente ano, tem a função de fiscalizar e propor políticas públicas para o Sistema Prisional. Formado também pelas instituições que integram o sistema de Justiça está, portanto, esvaziado. Sobrevivem teimosamente os poucos conselheiros independentes, que ocupam cadeiras de instituições da sociedade civil, inclusive a própria Pastoral Carcerária. Não há, portanto, sobre o sistema penitenciário atual, efetivo controle externo. Também a sociedade civil, em seu senso comum, padece da mesma cegueira.


Sou católica, vinculada de forma mais intensa à Igreja a partir do meu compromisso permanente como Carmelita Secular e me pergunto, igualmente assustada, onde estão os cristãos católicos? Por que a multidão de fiéis que são sim “cidadãos de bem” não socorrem filhos e familiares de presidiários para que não sejam alvo fácil das facções criminosas? Por que admitem a violência institucionalizada e muitas vezes acreditam ser o caminho certo? Onde está a similitude deste comportamento com os ensinamentos de Jesus?


Enfim, não reconheço mais que vivo em um Estado Democrático de Direito, não sonho mais que é possível a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Os poderes constituídos não escolheram esse ideal e parece que a sociedade civil também não o fez.


Há uma lei, entretanto, que é irrevogável. Toda escolha vai gerar uma consequência, essa lógica de violência inevitavelmente retornará impiedosa contra a sociedade. Por isso o silêncio é macabro! O tempo presente é enganador. O futuro, assustador.


Não haverá mais direitos fundamentais ou direitos humanos, garantias e instituições acreditáveis? Pois, hoje, escolhemos e apoiamos a violência institucionalizada e a tortura. Amanhã, crescida, essa mesma violência e tortura baterá na nossa porta. Então, sem a garantia das instituições democrática, nos reatará apenas amargar a dor e o sofrimento.


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Obs. A título de embasamento, para que não morra no abstrato a indignação aqui expressada, trago quadro exemplificativo do que de fato ocorre e que já foi provado via relatórios de inspeções de diversas instituições, inclusive o Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.



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