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Editorial: O Ceará e sua história de campos de concentração

Atualizado: 5 de ago. de 2019


Flagelados da seca de 1877 na estação ferroviária de Iguatu à espera de trem para Fortaleza. Fonte: Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na Seca de 1932. (Retirado de: amlef.com.br)

A Pastoral Carcerária do Ceará alicerça sua existência na defesa do irmão encarcerado, seguindo assim ensinamento que nosso mestre Jesus Cristo nos legou. Em Editorial, analisamos a situação da política penitenciária estadual - realidade esta, aliás, confirmada em Relatório publicado em abril deste ano pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).


"Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver."


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Ao se aproximar o fim do primeiro semestre do ano que flui, fomos rememorados que há cerca de 80 anos, não muito distante, portanto, tivemos a criação no Ceará de depósitos humanos que ficaram conhecidos por “currais do governo” para “acolhida” de retirantes. Tais ruralistas fugiam da seca que assolava o sertão nos anos entre 1915 e 1932.


Tratava-se, em miúdos, de um projeto de higienização social, criado como paliativo para combater o efeito da inação do próprio Estado quanto às políticas de combate à seca no sertão, que sempre serviu de retórica de manutenção de palanques de poder. E até hoje é assim.


Para preservar essa memória cultural de nosso Estado, o município de Senador Pompeu, após ação do órgão ministerial público, resolveu promover o tombamento do “Campo de Concentração do Patu”. História para se conhecer.


Mas outros municípios também têm histórias de campos de concentração para contar no Ceará. O campeão deles hodiernamente é o de Itaitinga, localizado na região metropolitana da Capital Fortaleza. Nele, hoje, concentra-se quase que a totalidade da população carcerária de todo o Estado, que já ultrapassa os 29.000 encarcerados.


Isso se dá porque neste ano de 2019, sem qualquer estruturação prévia, foram fechadas cadeias públicas de dezenas de municípios no Estado. Os presos foram trazidos e amontoados nas já abarrotadas unidades prisionais de Itaitinga que, diga-se de passagem, ainda aguardam conclusão de reformas desde as grandes rebeliões ocorridas no ano de 2016, seguida da guerra de facções criminosas em 2017.


Velha técnica do combate efeito e não resolve causa, vez que a causa está nas ruas. Principalmente, diria Loic Wacquant, em suas “prisões da miséria” – sua face econômica!


O governo comemora o dito “controle” das unidades prisionais como resultado das ações de coerção empregadas pela nova Secretaria de Administração Prisional (SAP). Denunciadas, estas, por órgãos nacionais e locais como indícios de prática de tortura.


Talvez pela mesma lógica dos campos de concentração antes citados, o objetivo nobre prescrito pela retórica agora não seja mais a seca, mas o “combate à violência”, “preservação da segurança púbica”, “combate às facções criminosas”...


Faça-se soar a ouvidos atentos que as políticas de combate ao crime até hoje empregadas apenas retroalimentam a própria criminalidade, uma vez que o sistema punitivo não traz em seu bojo a prática da recuperação do infrator em um tratamento penal justo e digno. Não se pode ter “pena” do preso, mas é preciso que se zele por um justo cumprimento da pena! Acreditamos que dessa forma, sim, combate-se com eficiência o crime e se protege a sociedade de fato.


Se nesses meses iniciais de 2019 experimenta-se calmaria no sistema prisional cearense, o grito da história dos campos de concentração prisional ecoa pelos jornais antigos amarelados nos sebos. “Antes da tempestade há uma calmaria!”, diz o proverbio popular.


Eufóricos pela aparente calma em que se apresenta a população carcerária nesses grandes presídios, o gestores públicos apresentam seus dados estatísticos “positivos” e parecem não conhecer a máxima dita por Paulo Freire sobre a Pedagogia do Oprimido: este jamais legitimará a ação do opressor, e isso o “impelirá em algum momento à fuga ou à rebelião” - ainda que lhe custe a própria vida ou a de outros.


Celas projetadas para comportar no máximo seis pessoas estão superlotadas com vinte, trinta e até mais, revezando-se em horários para dormir e fazer suas necessidades mais básicas. Isso é ou não característico de um campo de concentração? Apenas um resumo.


O tempo dirá se algum outro representante ministerial público entrará com ação para fazer registro do que hoje se presencia no município de Itaitinga. Assim, talvez, se possa ter mais esse tombamento da memória cultural dos campos de concentração de nosso Estado, seja qual for a retórica da política e da realidade social que se vivencie. Esperemos...


No mais, a exemplo da prefeitura de Senador Pompeu, a de Itaitinga agora já sabe que tem um nicho de turismo cultural a explorar. Ainda que trágico.

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